Considerações Finais

Apesar de Santo Antonio de Jesus não ter passado por um
processo de modernização com o advento da República
nas mesmas proporções das principais cidades
brasileiras, a Terra das Palmeiras não ficou totalmente à
parte dos ideais propagados pelo novo regime. As intervenções
da Estrada de Ferro acarretaram mudanças significativas no
cenário sócio-econômico e até mesmo
cultural da região. Mudanças essas das quais Santo
Antonio de Jesus fora uma das principais cidades beneficiadas e
expoentes.

Na última década da Monarquia e nas primeiras da
República, essa cidade sofreu um surto demográfico sem
precedentes na história local. O desenvolvimento do comércio
e as novas possibilidades abertas pela Estrada de Ferro atraíram
centenas de imigrantes, inclusive, europeus.

Através das falas extraídas dos autos, podemos
constatar uma certa assimilação dos discursos
propagados pelos poderes constituídos à época
aqui em apreço. Entretanto, evidencia-se ao mesmo tempo um
distanciamento entre o que os depoentes dizem em juízo e o
cotidiano desses indivíduos. Sabedores das pretensões e
valores propagados pelas autoridades policiais e judiciais, os
depoentes, sejam eles acusados ou vítimas e, principalmente,
as testemunhas, procuravam, quando lhes eram convenientes, aproximar
suas falas aos ditames das autoridades. Não que isso fosse
regra, muito pelo contrário, algumas testemunhas chegaram até
mesmo a falarem mais do que haviam sido inquiridas. Extrapolando as
restrições impostas pela padronização dos
interrogatórios. Em determinados casos, certas indiscrições
cometidas pelos depoentes poderiam até mesmo comprometer ainda
mais os indiciados.

Assim, através dos depoimentos registrados nos autos, foi
possível constatar como cada um dos envolvidos se via e,
também, como uns viam os outros. Entretanto, tivemos que
abstrair desses registros mais do que impressões elementares.
Faz-se necessário percebermos, ainda que com certas
limitações, o que estaria implícito. Dessa
forma, acreditamos ter notado confissões nas negações;
afirmações incertas; dúvidas nas conclusões;
depoimentos de “testemunhas” que não presenciaram o
ocorrido, dentre outras contradições. Contradições
estas que vêem a confirmar uma constatação já
citada de Sidney Chalhoub: “Por mais que tentem, os autos não
silenciam os atos”.1

Com exceção do engenheiro que atropelou o senhor idoso
nos trilhos da Estrada de Ferro e de um pequeno proprietário
de terras, assassinado por desconhecido(s), todos os agentes direta
ou indiretamente envolvidos nos homicídios, eram indivíduos
humildes, de pouca ou nenhuma escolaridade e moradores, na grande
maioria, da zona rural. Portanto, conviviam em uma realidade adversa
aos preceitos estabelecidos pelas instituições do
estado e seus colaboradores.

Na luta diária pela sobrevivência, a realidade
enfrentada por esses indivíduos nas ruas e roças de
Santo Antonio de Jesus, era bem diferente do que pretendiam instaurar
as autoridades com suas intervenções. Tanto na prática,
através das repressões aos comportamentos desvirtuantes
das normas pré-estabelecidas, quanto, principalmente, no campo
ideológico. Uma sociedade predominantemente de
afro-descendente, tendo num incipiente comércio e numa cultura
agrária muito mais enraizada, uma pequena elite de imigrantes,
ditando as ordens do dia. Sobreviver em meio a tantas adversidades,
com pouca possibilidade de ascensão na hierarquia social e sem
desfrutar de meios de diversão e lazer que viessem a dá
vasão as tensões do dia-a-dia, de certa forma, seria
até previsível que embates violentos fosse uma
constante por essas bandas, onde os homens resolviam suas desavenças
no braço. Às vezes com auxílio de uma peixeira,
outras, mais trágicas, com uma arma de fogo em punho. Não
faltaram também, os facões e até mesmo foice. Só
depois da desgraça, irremediavelmente instalada, o aparato
policial era colocado à par dos acontecimentos.

Ficou constatado que a investigação para a formação
do inquérito policial se restringia ao colhimento de
depoimento das testemunhas que não se opunham a fazê-lo.
Investigação propriamente dita, com a polícia em
campo colhendo provas materiais etc, que viesse a comprovar a
culpabilidade do indiciado, não havia. Nos casos em que o
acusado conseguiu livrar-se da prisão em flagrante, com uma
única exceção – o que só vem a
evidenciar a regra – o aparato policial santantoniense demonstrou,
simplesmente, total incapacidade em localizá-lo, prendê-lo,
reunir provas matérias que o comprometesse e lhe imputasse a
autoria do crime. Duas razões, imbricadas, explicaria esse
procedimento do aparato policial. Primeira: a polícia local
não disponha de material humano em número suficiente
para atender, satisfatoriamente, a comunidade. A Guarda Municipal
contava com meia dúzia de gatos pingados – Entenda-se,
policiais fardados – Como vimos no segundo capítulo, em
março de 1921 o delegado João de Oliveira Guerra,
ordenou a três praças da brigada policial que, com a
ajuda de civis, fossem ao encalço de um homicida. Procedimento
corriqueiro pelo que podemos perceber nos autos. Segunda: tendo um
efetivo inferior ao necessário para atender os anseios da
comunidade, a polícia se via obrigada a estabelecer
prioridades. E, aparentemente, crimes cometidos por pobre lavradores,
encontrando-se em local ignorado, não era – ou não
deveria ser – considerado prioridade. Crimes de maior repercussão
na sociedade, sejam pela sua dramaticidade, ou pelos agentes
envolvidos, teriam maiores possibilidades de serem apreciados pelo
aparato policial, do que os crimes desencadeados entre pessoas de
pouca expressividade, por motivos considerados “banais”,
principalmente se a cena do crime fosse a bucólica zona rural.
Habitada por lavradores pobres, analfabetos, com sangue afro correndo
em suas veias.

A preocupação maior do homicida santantoniense num
período em estudo, não era a execução do
crime em si, e sim, livrar-se do flagrante delito. Tamanha
despreocupação com a presteza da polícia local
nos é retratada em dois episódios em que para matar,
bastou que um dos contendores puxasse o gatilho e abandonasse o local
do crime. Deixando as testemunhas “atônitas” com a
incompreensão dos motivos que teriam desencadeado o disparo.
Já que era tão fácil ficar impune… atirava-se
primeiro aquele que fosse mais rápido no gatilho… fugia-se
em seguida.

Entretanto – ainda que para alguns venha parecer contraditório
–, os crimes de morte por si só, não embasariam
afirmações que viesse a apontar Santo Antonio de Jesus
como uma cidade violenta durante os quarenta primeiros anos da
República. Afinal, foram localizados apenas, e tão
somente, nove processos de homicídios nesta cidade no período
acima citado. Sem mencionar o homicídio praticado pelo escravo
em 1886 que por ter ocorrido três anos antes da Proclamação
da República não o estamos considerando nesse
somatório. O que nos daria uma média de quatro anos e
cinco meses para cada crime de morte – O que não nos garante
que no período aqui em estudo só tenha havido de fato
esses homicídios. Além dos cuidados dispensados pelo
fórum desta cidade aos processos prescritos ter, em teoria,
possibilitado o extravio e até mesmo a perda total desses
documentos, outros, da mesma época poderiam está aos
cuidados de outras instituições além desses
encontrados no acervo do Arquivo Público Municipal de Santo
Antonio de Jesus.

Contudo, não só de homicídios preocupavam-se as
autoridades santantonienses. Outros crimes, menos graves e, em maior
freqüência, foram registrados na pretoria dessa cidade.
Ainda assim, relativizando os dados estatísticos levantados
nessa primeira incursão aos empoeirados e estraçalhados
processos crimes do Arquivo Público Municipal desta cidade,
ficamos mais inclinados a considerarmos o período da primeira
república em Santo Antonio de Jesus, confrontando outros
dados, como o número de habitantes, como tendo sido
razoavelmente tranqüilo no que diz respeito à violência.
É claro que será imprescindível pesquisas mais
abrangentes para se chegar a conclusões mais precisas. Por
hora, com os dados aqui levantados, só é possível
concluir que, modestamente, não podemos concluir coisa alguma.
No máximo ousar algumas proposições.

Seria inconseqüente atribuir a uma amostragem tão pouco
expressiva, generalizações para uma sociedade complexa
como é o caso de Santo Antonio de Jesus. Colonizada, a
princípio, por pequenos proprietários de terras,
lavradores de gênero de subsistência que, a partir das
duas últimas décadas do século XIX é
literalmente invadida por imigrantes das localidades circunvizinhas
e, até mesmo, por estrangeiros. Esses novos e distintos
moradores inseriram-se num contexto onde, até então,
cerca de 40% da população era formada por ex-escravos e
seus descendente. Um verdadeiro caldeirão cultural, com
terreiros de candomblé espalhados nos quatros cantos da
cidade, convivendo truculentamente tanto com a perseguição
policial quanto com a atuante presença da religião
oficial. Tantas disparidades produziram certas desigualdades sociais.
Os representantes políticos eram, na sua esmagadora maioria,
os mais afortunados dentre os proprietários de terras. Ainda
que não fossem latifundiários, a concentração
de poderes (agrários e legislativos), garantia-lhes prestígio
e distinção social. Depois da agricultura –
principalmente a fumageira e a cafeeira –, o comércio era o
setor mais dinâmico e economicamente ativo dessa cidade.

O que mais se evidencia da história de Santo Antonio de
Jesus é, sem dúvidas, o fato dela ter sido pouco
estudada. A escassez de fonte, se não impossibilita,
certamente dificulta, significativamente, a vôos mais
audaciosos ao seu passado que, aliás, é relativamente
muito recente.

1
CHALHOUB, Sidney.
Trabalho, Lar e Botequim: O Cotidiano dos
Trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. São
Paulo. Brasiliense, 1986. p. 164.

Sobre elysonalmeida

Formado em Licenciatura Plena em História e Administração
Esse post foi publicado em Não categorizado. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário