Homicídios em Santo Antonio de Jesus na Primeira República

A pesquisa para a realização da Monografia teve como objeto de análise
os homicídios ocorridos no municipio de Santo Antonio de Jesus, entre
os anos de 1890 a 1930. A partir da análise dos processos crimes,
pretendo, abordar as motivações e os valores subjacentes aos conflitos
violentos entre os homens das mais variadas camadas sociais que viveram
neste importante município do recôncavo baiano no período denominado
Primeira República. Como também, traçar o perfil dos acusados e das
vítimas, e, principalmente, através da quantificação de variáveis como
idade, sexo, estado civil, naturalidade, moradia (zona urbana ou rural,
sede do município ou distrito), grau de instrução, raça/cor, profissão
e condição socioeconômica que, apresentada em números absolutos e/ou
percentuais, enriquecem a abordagem desses conflitos (homicídios) e
seus agentes diretamente envolvidos (agressores e agredidos), e outros
que se envolvem circunstancialmente (as testemunhas). Dessa forma,
buscar uma compreensão da sociedade em estudo através da complexidade
que envolve e desencadeia os crimes de mortes nas suas manifestações
tanto explícitas quanto, quando possível, implícitas. Assim, não será a
criminalidade em si e por si, o foco das minhas preocupações. O
objetivo maior é a apreensão dos valores dessa sociedade e o seu
cotidiano, através de indícios encontrados nos autos.
A Proclamação da República no Brasil, apesar da absoluta ausência
popular (ver José Murilo de Carvalho) – circunstância totalmente
atípica no cenário mundial –, ainda assim, é um dos marcos mais
importantes da nossa História. Os desdobramentos do 15 de Novembro de
1889, ainda que de forma morosa e mantendo certos privilégios a antigos
segmentos sociais do antigo regime em detrimentos as reivindicações
populares, foram, a longo prazo, incorporando novos valores a sociedade
brasileira como um todo. As mudanças oriundas da República sejam a
nível nacional – “não só do ponto de vista material, mas também do
ponto de vista das instituições de poder e de controle social, a
exemplo da constituição republicana do Código Penal de 1891, e dos
valores que permeavam as relações entre os indivíduos e os diferentes
segmentos sociais” (Nancy Rita Sento Sé de Assis) –, sejam a nível
local, a partir dos desdobramentos sócioeconomicos da Tram-Road de
Nazareth, ligando, a princípio, aquela cidade a Santo Antonio de Jesus
e, posteriormente, a elevação da vila à cidade, justificam a opção por
esse período.
    Através deste recorte na história de Santo Antonio
de Jesus, busco, abstraindo as falas dos agentes diretos ou
indiretamente (contestadores, advogados, promotores, delegados,
juizes), envolvidos nos crimes conjugados com o contexto histórico e as
implicações deste último no cotidiano da sociedade santantoniense, não
tão somente compreender, como também e, principalmente, tornar público,
importantes características de uma parcela de extrema relevância da
referida sociedade: os indivíduos que, pelas razões mais variadas,
atentaram, com êxito, contra a vida de outrem. Pretendo por esses meios
e, pelas motivações acima descritas, deixar um modesto legado tanto
para o povo da região, quanto para a historiografia social baiana.

Cinco, dos dez processos analisados nessa pesquisa esbarraram na
ineficiência da polícia local neste período. Na verdade a polícia só
apontou o culpado para os crimes que as testemunhas corroboraram. Na
menor dificuldade encontrada, a investigação estancava. Isso se dava,
principalmente, pelo número insuficiente de policiais. Esporadicamente,
em momentos de efervescência política, a Freguesia e posteriormente a
Vila, recebiam reforço vindo de Nazaré. Foi assim na eleição municipal
de 1897, ocasião em que uma tropa com trinta praças cercou o sobrado da
Câmara Municipal, localizada na Praça da Matriz, isolando as estradas
adjacentes com arame farpado (Isaías Alves).
No processo que antecedeu a elevação da Capela à Freguesia, o alferes
Antonio José da Silva Júnior, da Guarda Nacional e membro de seu
Conselho de Qualificação em Nazaré relatou em 12 de abril de 1851 que
havia em Santo Antonio de Jesus 937 cidadãos qualificados na Guarda
Nacional, sendo 832 do serviço ativo e outros 105 da reserva. O Juiz de
Direito da Comarca de Nazaré, Dr. André Corsino Pinto Chichorro da
Gama, também havia relatado em 31 de março de 1851 a existência de um
Juízo de Paz, uma subdelegacia, cerca de oitocentos votantes
qualificados, um Batalhão de Guarda Nacional, uma Companhia de
cavalaria com 838 praças do serviço ativo e outros 99 da reserva. Esses
documentos foram encaminhados ao Conselheiro Francisco Gonçalves
Martins, presidente da província e, provavelmente, os remeteu ao
Arcebispo Dom Romualdo Antonio Seixas que acabou acatando o pleito
santantoniense (Fernando Pinto de Queiroz).
Curioso que à mesma época, um demonstrativo de autoria do Sr. Francisco
Pereira dos Reis, aponta uma população de 6.164 habitantes nos 17
quarteirões em que foi dividido o Arraial (Fernado Queiroz). No mínimo
15% da população, entre outras atividades era também praça ou da Guarda
Nacional ou da Cavalaria. Se de fato havia tantos praças nessas
instituições, onde os mesmos estariam quando da eleição de 1897? E,
conseqüentemente, o porque de, mesmo tendo tantos praças na freguesia,
ter sido enviado uma tropa de Nazaré para Santo Antonio de Jesus
naquela ocasião? Na minha opinião, a resposta é óbvia: Não havia na
eleição de 1897 uma força “policial” em número suficiente para atender
as necessidades inerentes àquela comunidade. Os praças santantonienses
da Guarda Nacional preferiam “circular” através das comodidades dos
documentos oficiais do que em meios aos confrontos humanos nos
logradouros públicos.
No registro eclesiástico de terras (1856-1862) e no livro do
tabelionato de notas (1852/1875) pesquisado por Ana Maria Carvalho dos
Santos Oliveira, a autora encontrou 22 importantes proprietários de
terras com patentes da Guarda Nacional em Santo Antonio de Jesus. Eram
alferes, tenentes, capitães, majores e tenentes-coronéis. Mais do que
as atribuições de suas patentes, o que esses senhores almejavam era
prestígio e poder. Mecanismos para assegurar e legitimar distinção
social e imposição de seus interesses através da força
institucionalizada (Ana Maria Oliveira).
 O aparato policial santantoniense na Primeira República, prendeu
uma senhora, supostamente louca, suspeita de ter matado o próprio
marido, numa cadeia comum. A negligência de assistência adequada
acarretou a degeneração do quadro clínico dessa senhora, levando-a a
óbito em apenas um mês de prisão celular.
Quanto às características dos indivíduos direta ou indiretamente
envolvidos em tais crimes, constatamos que a maioria era formada por
homens pobres da zona rural. Em relação aos criminosos, apenas uma
mulher fora apontada como autora do crime. Esse tipo de crime ainda
hoje é majoritariamente praticado pelo sexo masculino. Invariavelmente,
o homem mostra-se mais violento e propenso a atentar contra a vida dos
seus desafetos do que a mulher. Até mesmo porque, especificamente ao
período e a localidade em estudo, essas mulheres ocupavam um espaço
social muito reduzido. Pouco ultrapassava os limites do próprio lar. A
exceção ficou por conta da senhora Maria Liberata de Jesus, mãe
solteira, precisando sustentar sua prole pelo esforço próprio, acabou
fugindo à regra. Sua recompensa pela “ousadia” veio em forma do
espancamento que sofrera de um pretendente a amásio, agravando o quadro
da tuberculose que lhe acometia sorrateiramente, levando-a a morte dois
meses depois da agressão.
Mais da metade dos réus era solteiro. Entre as vítimas esse percentual
cai um pouco (40%), até mesmo porque, não fora registrado o estado
civil de três dos dez mortos neste período.(Provavelmente, dois eram
solteiros e um era viúvo.) Essa variável para as testemunhas apresenta
um empate técnico com trinta solteiros (47,62%),  vinte e nove
casados (46,03%) e quatro viúvos (6,35%). Os registros quanto ao grau
de instrução dos réus são irrisórios – até mesmo porque a metade dos
homicidas não chegou a cair nas mãos da polícia –, impossibilitando
qualquer estimativa. O mesmo pode ser dito em relação às vítimas: só em
três casos, em razão de não ter havido a morte imediata, as vítimas
ainda conseguiram prestar depoimento na delegacia. Uma era analfabeta,
e outras duas sabiam ler e escrever. Mas, considerando os dados obtidos
referentes às testemunhas, pode-se, por essa amostragem, esboçar a um
quadro maior da sociedade santantoniense do período. Trinta e uma das
63 testemunhas eram analfabetas (49,21%), vinte e oito sabiam ler e
escrever (44,44%), três testemunhas (4,73%) não tiveram essa informação
registrada nos autos e, uma sabia assina o próprio nome – O que
convenhamos, não seria nem um pouco menos analfabeta que as outras.
Em relação às testemunhas que não tiveram o grau de instrução
registrada  nos autos, estou inclinado a acreditar que os peritos
estavam mais “propensos” a omitir essa informação em relação aos menos
instruídos, do que àqueles que tinham alguma instrução, sabendo, pelo
menos, ler e escrever. Assim, acrescentando os três casos omissos e a
que só sabia assinar o próprio nome – um analfabeto funcional – com os
49,21% declarados analfabetos, o percentual aumentaria para 55,56%. Se
tal proposição não se distanciar muito da realidade dos fatos, teríamos
uma sociedade predominantemente analfabeta. O que me leva a crer em tal
hipótese, é o grande número de lavradores entre as testemunhas, os
mesmos representam 44,44% do total – Curioso o fato de um percentual
aproximado, 42,86%, representar a relação que as testemunhas mantinham
com ambos os envolvidos nos homicídios, o agente e o paciente.
Segundo dados apresentados por Lamartine Augusto, em 1860 a população
de Nazaré já teria alcançado os 13.434 habitantes, sendo 11.856
analfabetos, representando algo em torno de 88,25%, incluindo-se aí
2.284 escravos (AUGUSTO). Curiosamente, o Mapa Estatístico da Divisão
Administrativa Judiciária e Eleitoral da Província da Bahia de 1876,
aponta uma população na paróquia de Nazaré de 13.334 habitantes
(OLIVEIRA). Os números são praticamente idênticos – sendo até mesmo
possível ter havido um erro de digitação na edição do livro de Ana
Maria Oliveira –, apesar do intervalo de doze anos que os separa. É bom
registrar que, Lamartine Augusto, principiante e amador, não sendo
historiador de profissão e, portanto, ignorante no que diz respeito à
metodologia, negligencia as fontes consultadas.
Um dado ainda mais significativo que pode esclarecer a cerca do grau de
instrução da população santantoniense, fora fornecido por Manoel
Jesuíno Ferreira. No seu mapa estatístico da população da Província da
Bahia, essa localidade aparece, a menos de três décadas da Abolição da
Escravatura, tendo um contingente de escravo girando em torno de 41% da
população. Faz-se necessário considerarmos que, à essa época, Laje,
então Nova Laje, ainda pertencia ao território santantoniense, com uma
população inclusive maior. O Termo da Nova Laje, que pertenceu a Santo
Antonio de Jesus até o início do período republicano, possuía à mesma
época 10.108 habitantes. Totalizando uma população de 19.758 “almas”.
Dos 9.654 habitantes da Freguesia de Santo Antonio de Jesus em 1876,
nada menos que 8.320, ou 86,18%, era analfabeto (Apud. OLIVEIRA).
Ao confrontarmos os 49,21% de analfabetos conseguidos a partir da
amostragem das 63 testemunhas que depuseram nos processos crimes aqui
analisados, com os 86,18% de 1876 apontados por Jesuíno Manoel
Ferreira, constatamos uma razoável melhora no grau de instrução dos
santantonienses. O inconveniente é que, enquanto Jesuíno Manoel
Ferreira refere-se a um único ano, apresentando números absolutos, em
contrapartida, estou utilizando dados de uma amostragem referente a
quatro décadas.
Em outro trabalho contemporâneo ao de Manoel Jesuíno Ferreira,
organizado pela seção de estatística do Estado da Bahia, Santo Antonio
de Jesus, também aparece em 1872 com os mesmos 9.654 habitantes
(VIANNA, Francisco. Apud. QUEIROZ). Será que os autores utilizaram-se
dos mesmos números mudando apenas a data de referência? Se assim fosse,
o autor do primeiro trabalho publicado seria o pai da criança. Ou
melhor dizendo, o credor do copyright.
Se confrontarmos esses dados com os apresentados pela capital da
Província de São Paulo no início da década de setenta do século XIX,
teríamos uma situação um tanto quanto inimaginável nos dias atuais. A
capital paulista em 1872 – até então um núcleo de pequena expressão –,
tinha uma população de 26 mil habitantes (Boris Fausto). Apesar de soar
um pouco estranho, podemos afirmar pelos dados acima expostos que, no
início da década de setenta, a população da cidade de São Paulo, hoje a
quarta maior cidade do mundo, não chegava a ser nem mesmo o dobro da de
Santo Antonio de Jesus/Nova Laje.
Se confrontarmos os dados da população escrava de Santo Antonio de
Jesus em meados da década de setenta com os apontados pela mesma fonte
para a cidade de Nazaré no mesmo período, teremos uma situação um tanto
quanto “inusitada” que mereceria um estudo específico em outra
oportunidade. Nos apontamentos de Manoel Jesuíno Ferreira, a cidade de
“Nazaré contava em 1876 com uma população de 13.334 habitantes, sendo
11.050 livres e 2.284 escravos” (Apud. OLIVEIRA). Lamartine Augusto nos
apresenta números praticamente idênticos, contudo, curiosamente,
atribuídos ao ano de 1860: “Em 1860 o município já registrava 13.434
habitantes, sendo 11.856 analfabetos, incluindo-se aí 2.284 escravos”.
Confrontando os dois autores, teríamos em 16 anos (1860 – 1876) um
decréscimo de 100 habitantes na população livre de Nazaré.
Curiosamente, o número de escravos permanece o mesmo – mera
coincidência? Ou imprecisão nos dados apresentados? – Estou inclinado a
acreditar que um desses dados anula o outro. Desconheço qualquer
indício que justificaria uma estagnação na população nazarena nesse
intervalo de tempo.
O mesmo “inverossímil” Lamartine Augusto, ao se referi a epidemia de
cólera que se abateu sobre Nazaré em agosto de 1855, no seu peculiar
estilo “(a-)historiográfico”, negligenciando as fontes, assevera o
número de 2.000 mortes decorrentes da epidemia. Quando, segundo o
autor, a população de Nazaré à época era de cerca de 12.000 habitantes.
Nada menos que 17% da população teria sido ceifada pela epidemia, num
intervalo de tempo curtíssimo.
Em sua Dissertação de Mestrado, publicada em forma de livro em 1996,
Onildo Reis David, aponta o número de vítimas da epidemia do cólera em
Nazaré no total de 3.215, lamentando, entretanto, desconhecer o número
total de habitantes daquela cidade. Caso lhe fosse apresentado “Porta
do Sertão” de Lamartine Augusto, Onildo David poderia ariscar-se em
sugerir que a epidemia teria ceifado aproximadamente 27% da população
nazarena. Pensando bem, Onildo David não se arriscaria tanto. Os
historiadores com formação acadêmica são mais prudentes do que os não
acadêmicos.
Nos cincos primeiros anos após a epidemia, a população nazarena teria
crescido entre 34% – considerando os números apresentados por Lamartine
Augusto, isto é: 12.000 habitantes em 1855, menos os 2.000 que
faleceram, passando para 13.434 em 1860 – e 53%, agora considerando que
o número de mortos tenha chegado aos 3.215 como constatou o historiador
Onildo David em suas pesquisas.
Após esse surpreendente crescimento demográfico, como explicar que
dezesseis anos depois a população apresentaria os mesmos números, agora
segundo os apontamentos de Manoel Jesuíno Ferreira? Recapitulando: A
população da cidade de Nazaré em 1860 seria de 13.434, segundo
Lamartine Augusto. E teria esse mesmo número de habitantes em 1876,
segundo Manoel Jesuíno Ferreira. Conclusão: nem tudo que é impresso
merece crédito!
Faz-se necessário salientar, que não tive acesso direto ao referido
trabalho de Manoel Jesuíno Ferreira. O mesmo foi citado por Ana Maria
Carvalho dos Santos Oliveira na sua Dissertação de mestrado.
Curiosamente, considerando a bibliografia apresentada por Ana Maria, os
Apontamentos de Manoel Jesuíno Ferreira, teria sido publicado um ano
antes da pesquisa. Isso é no mínimo contraditório. O fato de Lamartine
Augusto não mencionar suas fontes, também é um outro ponto relevante a
considerarmos.
A população escrava apresentada para Nazaré, em números proporcionais,
é exatamente a metade da apresentada para Santo Antonio de Jesus. Este
com 41% da população formada por escravos – desconsiderando a
expressiva população do termo da Nova Laje –, enquanto Nazaré aparece
com 17,13%. Como isso poderia ser explicado? Confesso que até o
presente momento desconheço os dados que justificaria tamanha diferença
no contingente escravo entre essas duas cidades tão próximas
historicamente. Entretanto, nada nos impede de traçamos algumas
proposições.
Como o comércio de Santo Antonio de Jesus só veio a sobrepujar o da
vizinha Nazaré algum tempo depois do prolongamento da Estrada de Ferro,
quando comerciantes nazarenos migraram para Santo Antonio de Jesus,
iniciativa esta, seguida por outros empreendedores e populares das
localidades circunvizinhas. Antes, porém, dos trilhos da Tram-Road
cruzar os solos do planalto santantoniense, a Vila era
predominantemente rural. Certamente bem mais que Nazaré, que já possuía
um comércio relativamente desenvolvido e um cotidiano urbano havia bem
mais tempo incorporado àquela sociedade. Talvez, em parte, esse fator
explique a significativa diferença no contingente escravo entre as duas
cidades.
Do alto da sua incontestável competência, Ana Maria Oliveira fora mais
categórica em relação a formação populacional santantoniense do período:

Considerando o período e os aspectos geográficos econômicos da região,
podemos afirmar que a maioria da população sobrevivia do trabalho
agrícola, utilizando-se da mão-de-obra escrava, da mão-de-obra familiar
e da “gente livre”, meeiros, rendeiros e pequenos proprietários, sendo
poucos aqueles que recorriam a outros meios para garantir o seu
sustento.

Curiosamente, a população escrava de Santo Antonio de Jesus em meados
da década de setenta se assemelha muito mais com a população
afro-descendente da cidade do Rio de Janeiro apontado pelo censo de
1890. “Dos 522 651 habitantes da capital registrados em 1890,
aproximadamente 180 000 ou 34% foram identificados como negros ou
mestiços” (Sidney Chalhoub).
A faixa etária das testemunhas ouvidas quer no inquérito policial, quer
na pretoria para a formação do sumario de culpa, gira em torno de
25,40% entre àqueles que tinham entre 20 e 29 anos, 30,16% entre os
indivíduos com idade variando entre 30 e 39 anos e, 25,40% entre os que
tinham idade variando dos 40 aos 49 anos. As cinqüenta e uma
testemunhas na faixa etária entre 20 e 49 anos representam, nada menos
que, 80,95% do total.

A negligência do aparato policial era tamanha que apenas uma vítima
teve sua naturalidade registrada nos autos. Situação semelhante
ocorrera em relação aos réus: um fora apontado tendo nascido em Santo
Antonio de Jesus e outro no Rio de Janeiro. Como a metade dos homicidas
sequer chegou a ser presa pela polícia, fica fácil de entendermos a
razão de tal omissão. Ainda assim, pelo quadro geral apresentado, creio
que os oito negligenciados eram baianos. Em relação à naturalidade das
testemunhas, temos dados interessantes: onze delas, cerca de 17,46% era
santantonienses de nascimentos. A grande maioria, 82,54% era de
imigrante, sendo que 14,29% não tiveram essa variável registrada nos
autos. Pelos dados aqui obtidos, “poderíamos” assinalar que, durante a
Primeira República, a localidade que mais fornecia migrantes para Santo
Antonio de Jesus, era Conceição do Almeida com 12,70% do total. O
segundo lugar “ficaria” com Nazaré 7,94% e a terceira São Felipe com
6,35%.
Entretanto, esses dados não refletem a realidade num universo mais
amplo, como 44,44% das testemunhas eram formadas por lavradores, até
mesmo por conta da maioria dos homicídios terem ocorrido na zona rural
– Inclusive, dois dos homicídios foram cometidos por lavradores. Única
profissão a aparecer com mais de um crime na estatística. –, os dados
acabam mascarando uma realidade maior. Eu acredito que os imigrantes
estabelecidos em Santo Antonio de Jesus optaram em residir no perímetro
urbano da cidade, exercendo as funções de comerciantes e artistas.
O prolongamento da Estrada de Ferro Tram-Road de Nazaré para Santo
Antonio de Jesus, acabou atraindo grande número de comerciantes daquela
cidade para o fim de linha da estrada de ferro na zona urbana de Santo
Antonio de Jesus. Esse número fora tão expressivo que toda uma rua do
comércio local fora tomada por comerciantes nazarenos. Motivo pelo qual
a rua ficou sendo conhecida, por muito tempo, por rua dos Nazarenos, em
homenagem àqueles que nela comercializavam. Não só de nazarenos vivia o
comércio local, a Tram-Road de Nazaré conseguiu atrair para a Terra das
Palmeiras muitos outros imigrantes, de várias localidades da região e,
até mesmo estrangeiros. Em relação a esses últimos, podemos citar, com
plena segurança a presença dos alemães, que muito contribuíram para o
desenvolvimento da manufatura da lavoura fumageira, italianos,
franceses, ingleses e espanhóis. Mesmo antes das intervenções dos
trilhos da Estrada de Ferro no cenário econômico dessa região, já se
registrava a presença de portugueses por essas bandas, principalmente
no comércio.
Ainda que a indústria fumageira tenha encontrado melhores oportunidades
de se desenvolver em localidades circunvizinhas, como fora o caso de
Maragogipe, Cachoeira, São Félix, Muritiba e, posteriormente, Cruz das
Almas, os empreendedores santantonienses também contribuíram com uma
parcela relativamente significativa, se não no beneficiamento do fumo,
certamente com a sua matéria prima.
A aparente contradição nesses dados estatísticos, na verdade nos
propicia assinalar outras considerações. No universo de dez homicídios,
apenas um fora cometido por comerciante – Não um típico comerciante de
fazendas ou secos e molhados do centro da cidade. Muito menos do
próspero comércio do fumo. E sim, um humilde proprietário de uma venda
conjugada a residência num sítio recuado cerca de duzentos metros da
rua da Cancela – O qual a justiça entendeu que fora praticado em
legítima defesa – Dentre as vítimas, encontramos outro membro desse
importante segmento da sociedade local. Ainda hoje o comércio é o
principal segmento da economia santantoniense. Já entre as testemunhas,
quatro (6,35%) se declararam negociantes. Dentre esses últimos, dois
residiam e comercializam na zona urbana e outros dois na zona rural.
Podemos assim deduzir que, a violência, no que diz respeito ao seu grau
máximo, o homicídio, era mais comum nas classes populares do que no
extremo oposto da sociedade aqui em estudo. Não significando,
entretanto, que os indivíduos pobres são mais predispostos à violência
do que os mais abastados. O universo por onde circulavam os indivíduos
menos favorecidos da sociedade santantoniense no período em estudo é
que se mostrava mais propenso a violência. Em razão, dentre outros
fatores, da ausência do Estado. A zona rural de Santo Antonio de Jesus
e a dos seus distritos eram completamente abandonadas à própria sorte.
Mandando e desmandando àqueles que possuíam as melhores e maiores
propriedades.
 Outro dado curioso que corrobora com tal afirmativa é o fato de
nenhum branco ter sido apontado entre os réus. Dois deles eram pretos,
um pardo e sete não tiveram essa informação registrada nos autos. Como
vimos anteriormente, a metade dos homicidas sequer chegou a ser preso.
Dois fugitivos eram lavradores, um terceiro também morava na zona
rural, acusado de ser vagabundo pelas testemunhas. Enfim, é pouco
provável que esses três elementos tenham sido branco. Até mesmo porque,
os indivíduos brancos do período aqui em estudo – o mesmo é constatado
atualmente –, tiveram maiores e melhores oportunidades de morarem na
zona urbana. Uma testemunha teria reconhecido um dos assassinos do
comerciante Ricardo de Moura Coutinho, não sabendo entretanto o nome do
mesmo, já que o conhecia apenas de vista; tampouco consta que ele tenha
descrito fisicamente o suspeito, apenas disse que o reconheceria caso o
visse novamente. Durante a leitura do processo fiquei com a impressão
do rapaz suspeito de participar da emboscada ao comerciante, residir em
rua distante do centro da cidade. O que teria concorrido, dentro outras
coisas, para a sua não identificação. Restaria apenas o autor da morte
do lavrador Sabino Francisco Rodrigues Malta. Este último, o defunto,
para contrariar o que acabei de afirmar, era branco. Entretanto, tal
exceção só vem a evidenciar a regra. O(s) responsável(veis) pela sua
morte jamais foi(ram) identificado(s).
O próprio Sabino não era um simples Lavrador qualquer. Era na verdade,
proprietário de um terreno na zona fronteiriça entre a zona urbana e
rural, a menos de dois quilômetros da rua Maria Preta – O que era
apenas uma rua, cercada de grande matagal, se transformou em um dos
maiores bairros residenciais desta cidade – Em relação às vítimas, três
fora apontada pelos peritos no auto do exame cadavérico como sendo da
cor branca, outras três eram pardas e, quatro – ainda que fosse óbvio
constatar essa característica de um cadáver –, não tiveram essa
variável registrada pelos peritos santantonienses.
Constatação semelhante à acima exposta, em relação a maior participação
de indivíduos das classes populares nos homicídios, fora realizada por
Nancy Rita Sento Sé de Assis na sua Dissertação de Mestrado:

Ainda que sejamos obrigados a admitir que os assassinatos e as trocas
de agressões físicas não sejam ações exclusivamente dos indivíduos das
camadas inferiores da sociedade, o contato com as fontes, os processos
crimes, confirmaram a sua maioria absoluta entre os protagonistas –
acusados e vítimas – e, conseqüentemente, dado os critérios de
intimação, também entre as testemunhas.

O mesmo fora observado por Boris Fausto, no campo mais amplo da criminalidade:

Do ângulo dos grupos humanos sobre os quais se exerce o poder, lido com
gente cujo denominador comum é quase sempre a pobreza. Não se trata de
uma “opção preferencial pelos pobres”, mas do simples fato de que quem
estuda formas abertas repressivas de controle social e a criminalidade
fala de pessoas destituídas, em maior ou menor grau.

Gostaria de encerrar esse tópico com a prudente e oportuna crítica que
o historiador Marcos Luiz Bretas faz aos seus colegas que, assim como
ele, utiliza registros policiais. Segundo Bretas, seus colegas utilizam
indicadores de homicídios como se fossem os mais confiáveis dados
estatísticos, “proporcionando um instrumento útil para comparar níveis
de violência em diferentes épocas e regiões. Mas as taxas de homicídios
constituem apenas um índice de comportamento violento, e devem ser
considerados de valor limitado”.
    Concordo, em parte, com Bretas. As especificidades
locais devem ser melhores consideradas em relação às generalizações.
Entretanto, uma não implica, necessariamente, na extinção da outra. Não
sou é possível, como também o é necessário, que às constatações dos
colegas nos sirvam de parâmetros. As constatações de precursores como
Boris Fausto, Sidney Chalhoub, Nancy de Assis, dentre outros, foram
fundamentais para a realização deste trabalho. Sem a contribuição de
suas obras, esta não teria sido possível. Não só por questões de
discussões bibliográficas – pré-requisito em trabalhos acadêmicos –,
mas também por apresentar caminhos ímpares que dificilmente um
principiante (calouro) como eu, perceberia por esforço próprio.
Contudo, em nenhum momento, perdi de vista que a realidade enfrentada
por São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador na Primeira República,
apresenta mais diferenças do que semelhanças em relação a Santo Antonio
de Jesus. No contato que mantive com as obras dos autores acima
citados, pude constatar que, as comparações, feitas por eles, entre as
principais cidades brasileiras do período serviram muito mais para
evidenciar as especificidades locais do que para forçar semelhanças que
não existiram.
Outro ponto levantado por Bretas, quanto a confiabilidade que os
historiadores teriam em relação aos indicadores de homicídios é sujeito
a certas ressalvas. Nenhum dos autores com os quais trabalhei demonstra
tal confiabilidade ou mesmo preocupação em atestar veracidade às
fontes. Todos, sem exceção, reconhecem o quanto os processos criminais
estariam impregnados de subjetividade. O que também é comum em outros
documentos. Os historiadores, inclusive o próprio Bretas, têm dado aos
processos criminais, não só a relevância, mas, principalmente, os
créditos em relação a sua suposta “fidedignidade”, quanto fonte, que os
mesmos merecem. Nada mais que isso.
Já é lugar-comum entre os pesquisadores dessa espinhosa temática que,
dados estatísticos referentes à violência e criminalidade não refletem,
necessariamente, a realidade. Nem todos os crimes praticados na
sociedade, independente da localidade e do tempo, chegam ao
conhecimento da polícia. E os que chegam, não são, em sua totalidade,
investigados e solucionados a contentos. Há sempre uma discrepância
entre o número de indiciados e o número de presos cumprindo suas penas.
No meio do caminho alguns processos esbarram na incapacidade do aparato
policial; outros emperram nos trâmites do judiciário. Processos são
arquivados por falta de provas; criminosos podem ser impronunciados
pela conivência, ou conveniência, das autoridades competentes; acusados
podem se beneficiar de atenuantes, outros serem prejudicados com a
figura jurídica do agravante. A depender do “freguês”, habeas-corpus
podem ou não ser deferidos. Um aumento significativo nos dados
estatísticos de violência e criminalidade, não corresponde
necessariamente, um aumento proporcional da violência e da
criminalidade em si, e sim, um aumento da repressão por parte dos
poderes competentes. Uma manifestação pública de intolerância a
determinada manifestação criminosa, poderá implicar numa maior
incidência, sistematizada, da repressão do estado a fim de demonstrar a
sua presença e cumplicidade com a opinião pública. Sem que isso venha a
implicar num aumento ou diminuição da criminalidade. Enfim, os dados
estatísticos refletiriam uma realidade superficial que levaria,
teoricamente, o pesquisador a cometer equívocos em suas interpretações.
Para minha felicidade, os autores com os quais trabalhei, já estavam
vacinados, conseqüentemente imunes, a esses males.
A mais oportuna observação a respeito da subjetividade e,
conseqüentemente, confiabilidade das fontes encontrada por mim durante
a pesquisa e realização desse trabalho, é de autoria do historiador
italiano Carlo Ginzburg. No último parágrafo da introdução de Relações
de força, Ginzburg diz o seguinte:

A idéia de que as fontes, se dignas de fé, oferecem um acesso imediato
à realidade ou, pelo menos, a um aspecto da realidade, me parece
igualmente rudimentar. As fontes não são nem janelas escancaradas, como
acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão, como pensam
os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A
análise da distorção especifica de qualquer fonte implica já um
elemento construtivo.
     

Sobre elysonalmeida

Formado em Licenciatura Plena em História e Administração
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